Escolas do 2º e 3º Ciclo do Ensino Básico

Artigo/reportagem

Palavras-chave: energia

Energias - testemunhos do antigamente
Escola EB 2,3 Cónego João Jacinto Gonçalves de Andrade (RIBEIRA BRAVA)

Hoje, o desenvolvimento espalhou-se por toda a ilha, e trouxe consigo a concretização do sonho de ter eletricidade em casa ou o carro à porta que leva pessoas e bens até à capital, ligando as localidades com uma facilidade há meio século impensável. Mas nem sempre foi assim.

Tempos houve em que os habitantes dos meios rurais experimentaram “na pele” os custos do isolamento, numa ilha como a Madeira que, pela particularidade da sua orografia, era propícia a isso mesmo: à criação de populações isoladas que mais pareciam viver em pequenas ilhas dentro de uma ilha maior. A freguesia do Campanário enquadrava-se neste paradigma, conforme viria a atestar ao longo da conversa que manteria connosco a senhora Maria Clara, com quem marcámos encontro na véspera. Conhecida na zona pela sua conversa fácil e por ser detentora de uma história de vida repleta de dificuldades, fomos ter com a anciã na expetativa de que aquela mulher de olhar observador e alerta partilhasse connosco um pouco da sua vivência do “antigamente” e daquilo que entretanto mudou na sua vida, fruto da evolução na utilização das diferentes formas energéticas.

Trajada de preto desde que se lhe partiu o marido, encontrámos a dona Maria Clara sentada na sua velha cadeira, estrategicamente disposta frente à sua residência, como que a vigiar o passar do tempo. Desta vez não estava só. Fazia-lhe companhia a sua parceira de bordadura, a dona Maria Adelaide, ambas debruadas por entre agulhas e negalhos de linhas, estocando freneticamente as agulhas no linho de uma tradicional toalha de bordado Madeira. Abeirámo-nos das mulheres e, cumpridos os introitos da praxe, lembrámos à senhora Maria Clara ao que vínhamos.

A conversa surgiu fluida e naturalmente: «Com que então as meninas estão a fazer um trabalho da escola! Terei com certeza todo o gosto em ajudar-vos, mas digo-lhes já que sou uma pessoa com poucos estudos. Antigamente não era qualquer um que andava na escola! Quem quisesse aprender mais uma coisinha tinha de ir p’rá cidade» atirou, apoiada pelo menear de cabeça em sinal de concordância da dona Maria Adelaide.

A propósito das deslocações “à cidade”, questionamos a nossa interlocutora acerca do modo como realizavam o transporte, quer de pessoas quer de mercadorias no “antigamente”, pergunta que despoletou um enrugar de face de tal forma expressivo de desagrado no rosto da entrevistada que pensámos até que aquela nos ia pregar um ralhete, algo que as suas palavras apressaram-se a contrariar, deixando antes transparecer o facto de que o simples reavivar desses tempos lhe traziam ainda alguma amargura: «as meninas nem queiram saber o tormento que isto era. Quando não havia a via rápida demorávamos, numa viagem de horário (2), quase uma hora para chegar à cidade. Ou íamos de horário ou íamos de lancha, que saía de lá de baixo, do Calhau da Lapa. Quando levávamos mercadorias para vender no mercado dos lavradores tinha mesmo de ser de barco e a mercadoria era carregada às costas pelo caminho que dá ao Calhau!» desabafou, atestando o quanto sofriam na pele aqueles que por residirem em freguesias rurais estavam votados ao isolamento. «Isto hoje é uma alegria já que uma pessoa em quinze minutos põe-se na cidade! – atirou, esboçando um esgar de satisfação – Antes é que era um inferno! Não havia carros como hoje em dia e, quando os havia, ainda assim era preciso ter os vinte e cinco tostões para pagar o bilhete. Por isso muitas vezes cheguei a ir a pé», confessou, comprovando a vida dura que as rugas na sua face por si só atestavam.

Outro dos aspectos em que o “sacrifício” das gentes do Campanário mais se fazia sentir nesses tempos, na nossa perspetiva longínquos, diz respeito à ausência da tão desejada eletricidade, que teimava em demorar a chegar à freguesia mais a leste do concelho da Ribeira Brava, conforme confidenciou à nossa reportagem a senhora Maria Clara: «Lembro-me perfeitamente da primeira vez que vi luz elétrica», disparou, massajando a testa, como que tentando reavivar a memória. «Foi na casa do senhor José Bento, era eu ainda uma pequena. Recordo-me perfeitamente como se fosse hoje! – Exclamou, deixando escapar um sorriso aberto – Os tempos eram diferentes e contavam-se pelos dedos das mãos as pessoas que tinham luz em casa» disse, logo acrescentando: «lembro-me de que na cidade já havia luz. Recordo-me de que quando lá íamos, por altura da “festa” (3), já havia iluminação na igreja da Sé e até nalgumas casas de gente com mais posses. Agente ia-se de madrugada para ver aquilo e ficávamos babados com tanta lindura (4)» afirmou, esboçando um sorriso prazeroso, contagiado pelas agradáveis memórias.

Questionada acerca das estratégias que então utilizavam para “sobreviver”, sem energia elétrica ou gás natural, a anciã foi pronta na resposta: «as meninas não fazem ideia de como isto era! Não havia frigoríficos nem essas modernices todas de hoje em dia. Usávamos lenha para nos aquecermos no Inverno e, à noite, alumiávamos a casa com lamparinas a petróleo ou a azeite de louro. Nem imaginam quantas noites ficávamos “até às tantas” a bordar à luz da candeia para ver se juntávamos mais uns tostões para dar de comer aos pequenos. Tempos difíceis», soltou em jeito de desabafo.

Um dos aspectos em que a falta de electricidade mais se fazia notar era, sem dúvida, na conservação e confeção dos alimentos, conforme testemunhou a senhora Maria Clara: «Ah se era! Alguns alimentos, como a carne e o peixe, salgávamos em púcaras ou fumávamos. Mas a maior parte tinha de ser consumido fresco. A vantagem é que tínhamos sempre o “mercado” à porta» gracejou, acenando com a cabeça em direção aos terrenos à frente da sua residência. Mas os anos passaram e a luz elétrica tardou mas chegou ao sítio da Adega. Maria Clara, mulher que hoje reparte o tempo entre o campo e o bordado, é hoje uma incondicional da eletricidade, embora reconheça alguns aspectos negativos relativamente à sua utilização: «se calhar para o ambiente e para a saúde estávamos melhor como antigamente. Mas, sabe como é, uma pessoa depois de estar “feita” a isto não quer saber de outra coisa. Hoje em dia não me imagino a viver sem televisão ou frigorífico, por exemplo. Graças a Deus tenho máquina de lavar, frigorífico, rádio e televisão, tudo a electricidade. Tento fazer o possível para poupar o máximo de energia, até porque com esta crise em que estamos agora não nos podemos “esticar” muito, mas não me tirem a minha telenovela à noite ou o terço no rádio ao fim da tarde» desabafou.

À pergunta sobre se já tinha ouvido falar em formas de energia renováveis, a nossa entrevistada foi pronta na resposta: «claro que sim meninas!» atirou prontamente, como que se sentindo desconsiderada face à pergunta que lhe acabáramos de colocar, comprovando logo a afirmação «a energia solar e a energia do vento, tal como eles fazem no Paul da Serra ou no Caniçal!», responde. Instada a comentar sobre se admite um dia recorrer à utilização desse tipo de energias, Maria Clara revelou alguma abertura face ao assunto: «olhe, agora que já “vou para a idade”, desde que não me tirem o conforto da televisão ou do frigorífico e que não me pese mais no bolso, porque não? Nestes tempos em que vivemos cada cêntimo poupado faz sempre jeito» rematou, em jeito de conclusão.

Dando por terminada a conversa, agradecemos à nossa entrevistada a sua colaboração, com a nossa interlocutora a despedir-se cordialmente e a retomar de pronto o trabalho de bordadura, como que ignorando o facto de o Sol, a grande fonte de energia do nosso planeta, já “avisar” que dentro em pouco também ele iria “descansar”, cedendo protagonismo a outras formas de energia, essas sim alternativas.

 

Regionalismos:
(1) Pequeno novelo ou pequena porção de linhas para coser.
(2) Veículo de transporte de passageiros. Autocarro.
(3) Época natalícia.
(4) Encantamento, deslumbre.
 
Elaborado por: Andrea Pinto e Melany Pinto (6.º D)